Vimos história acontecer ao vivo, em nosso passeio ciclístico à Piedade do Rio Grande, MG.
Mas foi mais que isso, todos os nossos sentidos foram mobilizados para vivenciar antigas experiências humanas. Ouvimos o som da madeira contra madeira dos bastões e do metal dos guizos.
Sentimos o cheiro da madeira queimada na fogueira e do suor de homens em frenética atividade. Misturamo-nos a história, na festa da Congada e Moçambique. Lia, a pouco, a tese da professora Lívia Nascimento Monteiro, Doutora em História pela UFF: “A congada também é chamada de terno ou côrte. Os primeiros registros de congados são do período colonial; para o historiador José Ramos Tinhorão há um registro de uma coroação de rei negro feita em 1711 no interior de uma irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Pernambuco, mas esta festa está ligada a coroação do rei do Congo, promovida em 1551, pelo rei português D. João III”. Então, o que eu e meu amigo Pedro Raimundo acompanhamos foi a recriação de uma antiga festa de coroação de reis africanos. Também assistimos a uma coroação, mas isso, conto depois.
Com o coração martelando mais forte do que quando subi a serra em minha bike e os olhos marejados de lágrimas vi aquele verso de Caetano e Gil reproduzido às avessas: “pretos, pobres e mulatos; e quase brancos quase pretos”. Mas não estavam, novamente, “levando porrada”. Aquelas duas filas de pretos velhos, meninos mulatos e fortes homens negros lembrava um desfile de reis e príncipes. Cabeças erguidas, cheios de orgulho próprio e nobreza a fila se moveu num passo de bailado.
Adiante fizeram coreografias belas, com suas roupas imaculadamente brancas, bastões coloridos nas mãos e guizos presos as pernas. A emoção, que como homem branco misturado por muitas cores, senti foi a beleza da dignidade de ser homem. Essa criatura, essa raça, eleita por Deus como os que mais se parece com Ele.
A professora diz que o brasileiro não tem uma boa noção do que foi a escravidão: “A análise de relatos de africanos vindos da Baía do Benim para a cidade do Rio de Janeiro no século XVIII, revela que havia uma ampla e bem organizada rede de relações sustentada pelos laços étnicos, religiosos e parentais que se organizavam com base na nação e na terra de onde procediam. Desse modo, no espaço colonial eles abriam mão de certas tradições e mantinham outras, buscando assim uma saída para continuarem existindo enquanto grupo étnico e político”. Longe de seu lugar de nascimento e afastados dos parentes o homem negro não se entregava e a atitude política era intensamente buscada por eles. Nas fazendas formavam um pequeno extrato de sociedade com chefe, líder espiritual, contador de histórias, artistas e negociantes, e o curador. Os negros escravos formavam uma sociedade complexa em meio a sociedade branca escravagista.
Porém, ouso discordar da professora ao dizer que os bastões coloridos não representam espadas humilhadas e mistificadas em paus. Estive tão perto que esperava a todo momento receber uma porretada no rosto. Na representação eles batem e baixo e depois em cima.
Em outro livro onde me divirto muito, A Cidade e as Serras, de Eça de Queiróz, fala dos primitivos portugueses e diz: “Nas suas altas terras, de volta de bater os mouros, nem mesmo despiam as fuscas armaduras e já iam lavrar suas chãs”. A Bíblia também conta dos judeus, que na volta a Jerusalém, tinham a enxada nas mãos e a espada na cintura. O símbolo do soldado-lavrador, do guerreiro-agricultor é o arquétipo mais lindo do estado de vigilância do homem sofredor. Assim, no terreiro da cidade de Piedade, eu vi, os homens cheios de seriedade e fleuma se dobrarem com seus bastões, como cavando a terra e, então, erguendo-os como espadas prontas para o combate. O que assistimos em Piedade foi a encenação da música Viola Enluarada: “Quem tem de noite a companheira/ Sabe que a paz é passageira,/ Prá defende-la se levanta/ E grita: Eu vou!” Escute aí: https://www.youtube.com/watch?v=FdaZHAXJFkQ