Na pousada, sentamos a mesa da jornalista Maria, exímia praticante do nobre esporte de levantamento de copo. Este, como o ciclismo, tem a capacidade de exacerbar a verborragia. E em sua maneira direta perguntou a mim e a Lili, a queima-roupa: como vocês se conheceram?
(Piraí cedinho, muito antes dos repiniques, tamborins e tambores começarem o carnaval)
No livro A Brincadeira, que levei para ler, avisa (p.94): “O amor tem tendência a engendrar sua própria lenda, a mitificar seus começos”. Assim, contei o que guardei na lembrança daquele dia muito especial, há 33 anos. “Estava parado a uma esquina quando vi uma bela mulher atravessando a rua vindo do mercado empurrando um carrinho de compra cheio até em cima. Ela parou e cheguei junto perguntado: possa ajuda-la e levar o carrinho? Ela disse: não precisa, moro neste prédio. Engrenei: gostei muito de te ver, podemos nos encontrar logo mais para conversar um bocado? Ela disse: sim".
A repórter e amiga virou para Lili: “E para você, como é que foi?”
Lili contou: “Ele disse que meu esmalte combinava comigo e minhas roupas eram de cores muito alegres...”
A outra pontificou: “Viu, esta é a visão ‘mulherzinha’. É isto que você – virando para mim – deve lembrar sempre".
O livro conta um encontro do personagem com uma jovem: “Por que ao cruzar com ela não continuei o meu caminho? Eu já não encontrara tantas garotas como ela pelas calçadas? Teria sido a luz singular daquela tarde que me fez retardar o passo? Ou teria sido algo no aspecto dela que me tocou e atraiu? Não sei”. Mais a frente ele reconhece que neste encontro “houve de fato uma espécie de visão, sim, vi a essência daquilo que ela se tornou para mim. Eu compreendi na hora, senti e vi claramente como ela era, como uma verdade revelada”.
Outro dia ele lê uma poesia de Frantisek Halas, um poeta húngaro maldito durante o comunismo, acusado de morbidez e de ser existencialista.
"Magra espiga o teu corpo
de onde grão que cai não germina.
Qual espiga magra é teu corpo.
Novelo de seda o teu corpo
recalcado de desejo até o último sulco.
Qual novelo de seda é teu corpo.
Céu de cinzas o teu corpo
e ns tus fímbrias a morte espreita e sonha
Qual céu de cinzas é teu corpo.
Silêncio sem par o teu corpo,
de ver teu pranto tremem minhas pálpebras.
Como teu corpo é silencioso".
Isso é amor a primeira vista, é poder ver tanto do outro em um breve instante. É o que a inteligente repórter queria arrancar da gente.