Sábado, 12 de Março de 2011

Coisa estranha ver que um homem santo, quer dizer, que luta sem desistir para vencer as inclinações prejudiciais da carne, escreveu uma poesia tão sensual.

S. João da Cruz (1542-1591)

Nestes versos (1578) ele fala de uma mulher buscando às escondidas seu amado, porém... não, leia primeiro.

 

(o significado dos números está no final)

Em uma noite escura,

De amor em vivas ânsias inflamada, (1)

Oh, ditosa ventura!

Saí sem ser notada, (2)

Já minha casa estando sossegada. (3)

Na escuridão, segura,

Pela secreta escada, disfarçada, (4)

Oh, ditosa ventura!

Na escuridão, velada,

Já minha casa estando sossegada.

Em noite tão ditosa,

E num segredo em que ninguém me via,

Nem eu olhava coisa,

Sem outra luz nem guia (5)

Além da que no coração me ardia.

Essa luz me guiava,

Com mais clareza que a do meio-dia,

Aonde me esperava

Quem eu bem conhecia, (6)

Em sítio onde ninguém aparecia. (7)

Oh, noite que me guiaste!

Oh, noite mais amável que a alvorada!

Oh, noite que juntaste

Amado com amada,

Amada já no Amado transformada! (8)

Em meu peito florido

Que, inteiro para ele só guardava,

Quedou-se adormecido,

E eu, terna, o regalava,

E dos cedros o leque o refrescava.

Da ameia a brisa amena,

Quando eu os seus cabelos afagava,

Com sua mão serena

Em meu colo soprava,

E meus sentidos todos transportava.

Esquecida, quedei-me,

O rosto reclinado sobre o Amado; (9)

Tudo cessou. Deixei-me,

Largando meu cuidado

Por entre as açucenas olvidado.

 

Não há dúvida de que são versos cheios de sensualidade, como era a poesia do século 16, das grandes navegações. Haja visto o Decamerom, de Giovanni Boccaccio. Mas o devoto São João da Cruz aproveita o modo de versejar tão apreciado naquela época (e porque não dizer, da nossa também) para falar do amor pelo Cristo já de volta a glória no mundo espiritual. Em verdade ele descreve o modo pelo qual o místico chega ao estado de perfeição espiritual. Leia de novo trocando o sentido literal pelo figurado.

 

 (1) Trata-se de alma adiantada na espiritualidade, pois está incendiada do amor a Deus.

(2) Isto é, saiu de si, sem ser impedida pelos sentidos inferiores que compõem o ego.

(3) Casa sossegada: vida interior com pleno domínio das pulsões inferiores e das paixões menores.

(4) A escada mística da ascese rumo à Divindade.

(5) A luz da fé e do amor.

(6) Sendo evoluída, a alma já conhecia a Divindade.

(7) O centro da alma, o espírito, que é também sua parte mais alta.

(8) Pela união com a Luz a alma se transforma em Luz.

(9) O Senhor Jesus

 


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publicado por joseadal às 11:11
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